O mundo aberto de Eraserhead e a paisagem da síntese

* por Henrique Correia

A querela entre som e imagem

O som e a imagem cinematográfica têm uma história juntos, percorrida através de espirais de desencontros e convergências. O papel do som no cinema incorre nesta dissonância estética que orbita na criação cinematográfica. Muitos cineastas e críticos acreditam que o meio visual é a sua quintessência, de modo que o cinema seria a continuidade de uma tradição de artes imagéticas.

Quando o som chega ao cinema, já no fim da primeira década do século XX, com pianistas ou fonógrafos acompanhando os filmes, e alguns anos mais tarde, no final dos anos 1920, com o surgimento do cinema falado, muitos acreditavam que a linguagem cinematográfica estava sendo desvirtuada. Na aurora do cinema sonoro, em 1929, já vislumbrando a extinção do cinema mudo, René Clair, questionando se o verdadeiro estilo cinematográfico sobreviveria à chegada do som, profetiza: “Aqueles que viram uma arte nascer, em breve verão esta morrer.”

Mais tarde, já consolidado o cinema sonoro, ainda havia uma resistência sobre a existência de componentes aurais em películas cinematográficas. No fim dos anos 1950, o artista avant-garde Stan Brakhage, por exemplo, num determinado momento da carreira optou por trabalhar com a linguagem cinematográfica sob um viés exclusivamente imagético-pictórico. Esta tendência foi seguida por outros artistas do meio. Numa carta para Ronna Page ele explicita este anseio:

Eu agora não vejo e nem sinto mais a absoluta necessidade para uma trilha sonora, tal qual um pintor deve sentir que não seja necessária a existência de um pano de fundo musical durante a exposição de uma pintura.”

O tempo e a imagem

Mas o que diferencia a imagem cinematográfica da imagem presente na pintura? A sua temporalidade, a matéria prima oferecida pelo tempo. É na exploração da temporalidade que o Cinema e a música encontram seu ponto de interseção. Não é à toa que Thomas Alvas Edison concebeu o Kinetoscópio como uma extensão ocular da experiência que o Fonógrafo oferecia aos ouvidos, sugerindo uma síntese entre as artes:

“No ano de 1877 uma ideia me veio de que seria possível conceber um instrumento que faria para os olhos aquilo que o fonógrafo fazia para o ouvido e que por uma combinação dos dois, todo movimento, imagem e som, poderiam ser gravados e reproduzidos simultaneamente.”

A pintura é definida por Hegel como uma arte espacial em oposição a música, que é categorizada pelo filósofo alemão como uma arte temporal. Neste cabo-de-guerra de predicações conceituais o cinema surge como uma aberração que parece aglutinar formas expressivas de diversas artes.

Com um olhar diferente, Tarkovsky se opõe à tendência existente de afirmar que o cinema se resume a uma simples sintese das artes. Indo de acordo com o ponto de vista de Robert Bresson (para ele, o melhor cineasta do mundo), Tarkovsky vê o cinema como portador de uma essência específica, submissa à leis que lhe são próprias, da mesma forma que a pintura e a música. Contudo, ele não recusa a idéia de que estas artes possam sofrer interações entre si.

Para Tarkovsky, o espectador vai ao cinema com o intuito de se reencontrar com o tempo perdido. O tempo é essencial na construção da personalidade do indivíduo e é a razão pela qual o espectador vai ao cinema. A temporalidade se manifesta no âmago do espectador através do cinema, como uma forma de se vivenciar uma experiência de ordem temporal, tal qual um aparato que proporciona o reaver de um tempo passado, as lembranças filtradas pela memória e o tempo que foi negligenciado. O homem vive numa linha espaço-tempo que inexiste fora da temporalidade. O que interessa a Tarkovsky na experiência cinematográfica do espectador é a interação entre o tempo do filme e o tempo vivido por ele, sendo a realização desta experiência um momento infinitamente íntimo e pessoal. Em “Esculpir o Tempo”, Tarkovsky utiliza-se de uma metáfora na qual o papel do cineasta se equipara ao de um escultor que esculpe o tempo: “é papel do cineasta fixar e imprimir o tempo sobre o fotograma.”

Lynch e a síntese na narrativa fílmica

Partindo de um ponto totalmente novo, Lynch também irá propor uma visão estética sobre o cinema, na qual a síntese entre as artes não é só possível e benquista, como era para Tarkovsky, mas configura a própria constituição formal do discurso cinematográfico; sem essências desta vez e fundado, sobretudo, em intenções. O anseio por uma síntese das linguagens artísticas está presente desde que inicia sua carreira como cineasta.

dog (2012) - Exposição Naming. Imagem: Pintura David Lynch | Fotografada por Brian Forrest.

dog (2012) – Exposição Naming. Imagem: Pintura David Lynch | Fotografada por Brian Forrest.

Um pouco antes de envolver-se com cinema, Lynch inicia sua trajetória artística como pintor, chegando a estudar em várias instituições dedicadas às artes pictóricas como a Corcoran School of Art, em Washington, D.C e o Boston Museum School. Sua aproximação com o cinema ocorre devido a um sentimento de frustração sobre o meio de expressão a que dedicava sua visão estética, despertado por um limite estético que não conseguiu contornar durante o desenvolvimento de uma das suas pinturas. Esta experiência é contada em uma entrevista concedida a Larry Sider, relatada no livro Soundscape: The School of Sound Lectures: 1998-2001:

Eu estava na Filadélfia, na Academia Pensilvânia para as Belas Artes. E eu era apenas um pintor, e estava feliz com a pintura. Então estava trabalhando em uma pintura, cujo tema era uma figura em um jardim. Era basicamente uma tela negra com uma figura emergindo da escuridão. E havia algum pouco de verde, você sabe, saindo. Ouvi um vento e vi a figura mover-se. E pensei que eu queria ter algum movimento, algum som a pintura. Eu queria ouvir o vento sobre a figura.”

A criação de Eraserhead

O primeiro longa metragem do diretor, Eraserhead (1977), surge a partir de uma série de atropelos e hesitações. A fagulha inicial foi o projeto fracassado de outro filme, Gardenback, que não funcionou devido a uma série de intervenções estéticas sugeridas por seus professores do American Film Institute – AFI e que não foram acatadas pelo cineasta. O resultado foi o abandono de Gardenback e o início de um novo projeto fílmico: Eraserhead.

Cine-concerto INCITI - Eraserhead. Imagem: Manuela Salazar

Cine-concerto INCITI – Eraserhead. Imagem: Manuela Salazar

O roteiro de Eraserhead era bastante curto, possuía apenas 21 páginas, e garantiu a Lynch uma verba do próprio AFI para sua realização. Inicialmente um curta de 20 minutos, tornou-se, depois de uma renegociação, um projeto de um média de 42 minutos. O tamanho do roteiro preocupava seus professores e financiadores, que achavam que o filme seria um fiasco por conter diálogos curtos demais e cenas sem muita ação. A despeito disso, Lynch permaneceu firme em suas decisões estéticas. No meio das filmagens, o AFI cortou a verba para a finalização do filme por desconfiar que o diretor estivesse realizando um longa. A produção foi ficando cada vez mais difícil e intermitente, sendo o filme costurado a partir destas complicações com diversas pausas e retomadas. Eraserhead foi exibido pela primeira vez em 1977 no cinema Village em Nova York numa sessão noturna dedicada à produções mais experimentais e com pouco apelo mercadológico.

A atmosfera bizarra, grotesca e surreal de Eraserhead aparecerá em alguma medida nas produções posteriores do diretor. Sendo assim, não seria de todo errôneo afirmar que o seu primeiro longa sintetiza sua visão sobre a sua narratividade cinematográfica. A realidade é virada pelo avesso, gestos banais do cotidiano são revisados, imbuídos por bizarrices, e deste modo o próprio cotidiano é recriado, sugerindo que a tela de cinema é uma janela para uma nova realidade. Portanto, qualquer estranhamento não é só proposital como é também uma condição estética basilar para a recepção da obra.

Performance ao vivo de Henrique Correia e Vinícius de Farias. Imagem: Manuela Salzar.

Performance ao vivo de Henrique Correia e Vinícius de Farias. Imagem: Manuela Salazar.

Eraserhead e sua paisagem sonora, uma proposta de cine-concerto

Na criação deste novo mundo o som assume um papel de suma importância, conforme afirma nesta entrevista:

O som é cinquenta por cento de um filme, pelo menos. Em algumas cenas é quase cem por cento. É a única coisa que pode atribuir tanta emoção a um filme. É a coisa que pode adicionar toda uma atmosfera, criando, assim, um universo maior. É ele que estabelece o ‘tom’ do filme e agita as coisas. O som é uma grande ´alavanca´ para um mundo diferente. E tem que trabalhar com a imagem, mas sem ele você perde metade do filme.

No discurso estético que perpassa Eraserhead, o som é uma das forças naturais deste estranho e novo mundo visto sob uma perspectiva monádica, representando para os nossos ouvidos a paisagem sonora daquele lugar ou sua imagem-fantasma. A diferença inexiste aqui. O som irrompe por frestas, arrebenta paredes, atravessa velozmente campos abertos, é livre para transitar em vários espaços, desde que haja um lugar/meio para que possa perpetuar suas vibrações.

Cine-concerto INCITI – Eraserhead. Imagem: Manuela Salazar

Cine-concerto INCITI – Eraserhead. Imagem: Manuela Salazar

As vibrações do som carregam consigo o reflexo (reverb) dos lugares-meios por qual passa, sendo moldado constantemente, em larga e micro-escala, tal qual um feixe de luz refratado pela mudança de densidade do meio. O som é constantemente plasmado pelos espaços e meios em que passeia, e caso pudéssemos ver sua imagem, veríamos que ela ocupa tudo que se pode tocar ao seu redor, constituindo uma presença fantasma cujo formato denuncia sua trajetória e que urge por se expandir. O protagonismo do som em Eraserhead parece que reforça a afirmação de Jaques Aumont no Livro O Olho Interminável de que “cinema é imagem sonora”.

A sua realidade está sempre presente, mas não sob o domínio de formas fixas, como um real congelado, mas sim sob o reino do indeterminado, do imprevisível, do devir, daquilo que é perpetuamente atualizável. A partir do momento que o filme afixa a qualidade desses sons, seu reino de indeterminação trava.

Daí surgiu a idéia de fazermos um cine-concerto sobre Eraserhead, pegando como gancho toda as possibilidades de sons que aquela realidade sugeria, de modo a trazê-los à tona como uma realidade presente, como partes daquela paisagem que estava se desnudando na tela, com toda força da miríade de suas possibilidades sintéticas.