texto e fotos por Manuela Salazar
As heterotopias de Michel Foucault são “espécies de utopias efetivamente realizadas”, “de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis”. Espaços não hegemônicos. No texto “De outros espaços” o filósofo elenca o barco, esse “pedaço flutuante de espaço”, como a heterotopia por excelência: trata-se de nossa maior reserva de imaginação, absolutamente essenciais para surgirem os sonhos das civilizações.
E de fato, tanto para mim, como para meus colegas da equipe de comunicação do INCITI e para muita gente, há algo de fantástico na ideia de entrar num barco e simplesmente navegar. E, com muita expectativa, foi o que fizemos na última quarta-feira (27 de abril), partindo bem cedo pela manhã da Ponte Maurício de Nassau no Recife, rumo às maravilhas do Rio Capibaribe. A data havia sido cuidadosamente escolhida por nosso guia, o biólogo da equipe Leonardo Melo, em função da melhor das marés, assim como “nosso capitão”, o pescador e barqueiro Davi. Tínhamos em mente o objetivo claro de coletar ideias, imagens e clarificar conceitos sobre fauna e flora do rio para o projeto do livreto educativo Ribe, mas fomos muito além disso. Para Foucault, são os barcos lugares sem lugar, fechados sobre si mesmos, e entregues ao infinito das águas. Nesse lugar de confinamento temporário, nós ultrapassamos as fronteiras daquilo que entendíamos por Recife e por sua paisagem.
Em primeiro lugar, percorremos o tradicional cartão postal de Recife, o estuário do Capibaribe, entre ruas de nome simples “do Apolo”, do “Sol”, “da Aurora”, com a forte marca das arquitetura portuguesa e holandesa, e a forte presença das pontes da cidade. Passada a Ponte Velha, adentramos no território do projeto Parque Capibaribe, que percorremos por completo, até a Av. Caxangá na Várzea. Seguindo, navegamos entre o Coque e os Coelhos, vivenciando o completo contraste sócio econômico que contrapõe as moradias improvisadas das palafitas, com enormes edifícios espelhados do complexo hospitalar do Recife. A seguir, segue-se por um trecho repleto de grandes edifícios e marcado pelo adensamento do mangue ciliar em ambos os lados da “beira-rio”.
A partir daí, o sentimento de “não-lugar” se exacerba: estamos cercados de verde e de águas e fica difícil distinguir onde estamos, salvo alguns pontos de referência que vez por outra se abrem entre a densa vegetação. Vemos a Torre e as Graças, o Jardim do Baobá, a Jaqueira, o poço da Panela, o bar Capibar, a ponte de pedestres entre o Parque Santana e a vila Santa Luzia, área que recentemente sofreu com um incêndio que dizimou as palafitas, a ilha do Zeca, a BR 101, a ponte da Caxangá.
Durante todo o trajeto, o biólogo Leo nos mostrou, explicou e esclareceu uma série de detalhes a respeito das plantas e bichos que habitam o rio. Num passeio como este, fica mais evidente a frase que sempre repetimos: o Capibaribe vive. O Capibaribe vai muito além das nesgas que dele enxergamos pelas pontes da cidade. O Capibaribe é lar de muitos seres vivos, como andorinhas, jaçanãs, garças (brancas e azuis!), e savacus-de-coroa (que gostam de “arrefecer” por entre as folhas, com as asas abertas”, capivaras (vimos uma!), peixes, morcegos, aratus e caranguejos, e, para nosso espanto, jacarés do papo amarelo!
O Capibaribe vai também muito além dos limites da paisagem e, mesmo esquecido, utilizado como despejo de dejetos e pouco vivenciado pelo recifense, permanece ainda como fonte de sustento e moradia de muita gente. Suas águas espelham o rosto de muitos pescadores das margens, barqueiros como Seu Antônio ou Seu Mita, que promovem travessias de uma margem à outra, barqueiros como Davi, que promovem passeios como o nosso, pessoas que criam bichos ou plantam milho nos entornos, e, claro, aquelas que vivem em palafitas e outras moradias na beira do rio. De dentro das águas, vemos uma miríade de vidas, seus varais, varandas com plantinhas, redes, cadeiras de balaço, enxergando muito além da dita precariedade. De muitas janelas, pequenos recifenses acenavam e ouvimos até um convite para atracarmos: “aqui é um píer!”.
“O espaço em que vivemos, pelo qual somos lançados para fora de nós mesmos, no qual se desenrola precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo e de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos erode é também, em si mesmo, um espaço heterogêneo”, diz Foucault. Um passeio pelo rio Capibaribe é uma demonstração efetiva dessa heterogeneidade. Na heterotopia que vivemos nesta quarta-feira, o auge foi o trecho após a BR-101. À essa altura, o rio já não é tão salino, a característica estuarina se ameniza, e podemos ver crescer vegetação mais densa, mais variada. Ali, nos sentimos longe e próximos do Recife, ao mesmo tempo. No silêncio das águas, o barulho do barco nos faz sonhar com uma cidade que enxergue mais o potencial que existe em um rio como este. Sonhar com uma cidade mais parque, sonhar em navegar o rio Capibaribe sempre que possível, sonhar em nadar em suas águas. Muito mais do que o conhecimento que buscávamos, findamos o passeio, de volta ao Cais de Santa Rita, com a mente fervilhando pela concretização destes desejos flutuantes!